terça-feira, 26 de outubro de 2010

Eu, caçador de mim

Era sexta-feira à noite quando o encontrei estirado no sofá, pé em cima da cadeira, cinzeiro no chão. Perguntei-lhe porque não saía mais de casa, disse que não mais lhe agradava. E continuou com aquela cara de enterro por não sei mais quantas horas. Decidi ir me deitar.
Nunca havia reparado em seus maus hábitos. Não trabalhava e não estudava direito, nem sei como conseguíamos mantê-lo ali, sob o mesmo teto, aquele rancoroso rapaz. Não escutava os meus conselhos, não aceitava os contratos que propuséramos. Não era de seu feitio manter a cozinha limpa. Nem a cozinha nem a área de serviço. O apartamento vivia numa bagunça tamanha que já não conseguia nem encontrar meu jaleco no quarto. O indivíduo era tão desorganizado que me desorganizava só de pensar que dividíamos a mesma morada.
A situação se estendeu ainda alguns meses. Eu ia e voltava do trabalho esgotado física e mentalmente, tamanha a influência que aquela situação estressante exercia sobre mim. Não conseguia mais me concentrar em nada, entregava provas em branco, não participava dos trabalhos em grupos, e muitas vezes saía da faculdade fugido pra casa descansar, depois de um dia intenso de trabalho, banho tomado, luz apagada, e o Rage Against The Machine a expurgar tudo de ruim que eu tinha no peito.
Mas mal chegava o sono, por tantas horas mais que eu dormisse, acordava ruim, sempre. Troquei colchão e travesseiro, sapatos e cordeiros, contava de dez a um pra dormir. Não adiantou de nada. Cheguei a pensar que era bom começar a fumar. Comecei, fui parar no hospital. Disse chega!, é hora de por um ponto final.
Acordei cedo, lavei bem o rosto como tirasse a vergonha com espuma, e lá ia eu tomar o desjejum derradeiro. Depois daquele café com pão, minha vida não seria mais a mesma. Estava finalmente disposto a dar cabo do maldito. Que fosse se ferrar ele e aquele seu mau humor desgraçado!
A secretária do consultório médico fingiu não ver o meu amigo. Menos mau, pensei, assim não teria de dar explicações das atitudes costumeiramente inconvenientes dele. Eu era o último do dia, a voz do dr encheu a sala toda: THIAGO ORLANDIN, me acompanhe. Arrastei meu amigo pelo braço e fui direto sentar-me na maca. Havia um espelho enorme, e pela primeira vez fitei meu amigo nos olhos. Foi como se eu tivesse vivido o final de um filme que eu não assisti. Foi como se eu tivesse renascido em mim, depois de ter me reconhecido rabugento e só.